

É difícil entender como um país com tanta inteligência acumulada e universidades reconhecidas internacionalmente continua financiando a inovação alheia. Um estudo recente da USP e da UnB, intitulado “Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro”, escancara esse contrassenso e estima que, entre 2014 e 2025, o setor público brasileiro — abrangendo as esferas federal, estadual e municipal — contratou pelo menos R$ 23 bilhões em soluções de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), incluindo licenças de software, serviços de nuvem e segurança digital — um volume de recursos superior ao orçamento de diversos ministérios federais.
O estudo, assinado por Ergon Cugler, Isabela Rocha, José Carlos Vaz, Camila Modanez e Julia Veneziani, parte de uma análise minuciosa das bases ComprasNet e Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), identificando um padrão sistemático de dependência de tecnologias estrangeiras por parte da administração pública. Ainda que os dados estejam sujeitos a subnotificações, inconsistências e sobreposições, o valor consolidado já é expressivo o suficiente para demonstrar a magnitude do problema.
Mais do que números, o relatório propõe uma reflexão: que modelo de desenvolvimento o Brasil está, de fato, financiando?
De acordo com Ergon Cugler, pesquisador da FGV e integrante do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip-USP), o cenário atual revela uma clara inversão de prioridades. “Não faz sentido o Brasil gastar bilhões de reais em contratos com fornecedores estrangeiros de tecnologia enquanto nossas universidades e centros de pesquisa operam com orçamentos apertados há décadas”, afirma. E vai além: “Estamos enviando dinheiro público para sustentar a inovação em outros países, quando poderíamos investir esse mesmo valor aqui, fortalecendo a capacidade científica nacional, gerando empregos qualificados e desenvolvendo soluções tecnológicas próprias”.
De fato, os dados impressionam. O levantamento aponta que, com os valores gastos em tecnologia importada ao longo da última década, o Brasil poderia ter construído pelo menos 86 data centers de alto padrão no próprio território. Ou, alternativamente, garantir o funcionamento pleno da Universidade de Brasília (UnB) — incluindo toda a folha de pagamento, manutenção e investimentos — por até quatro anos e meio.
Entre janeiro de 2023 e junho de 2025, período que compreende parte do atual mandato presidencial, foram contratados R$ 5,97 bilhões em licenças de software, R$ 9 bilhões em soluções de nuvem e R$ 1,91 bilhão em segurança digital. Boa parte desses valores está concentrada em poucos fornecedores. Empresas como Microsoft, Oracle, Google e Red Hat dominam as contratações no âmbito federal.
A Microsoft, sozinha, acumulou R$ 3,27 bilhões em licenças, sendo R$ 1,65 bilhão apenas nos seis primeiros meses de 2025. No PNCP, a Oracle aparece com R$ 1,02 bilhão em contratos; o Google, com R$ 938 milhões; e a Red Hat, com R$ 909 milhões.
Outro ponto relevante destacado pelo estudo é a forma como essas negociações ocorrem. Muitas vezes, os contratos são intermediados por CNPJs nacionais especializados em revenda de licenças internacionais, o que cria um mercado paralelo de intermediação que beneficia poucos — enquanto restringe ainda mais o acesso de startups, institutos de pesquisa e universidades brasileiras a contratos públicos.
“Cada contrato fechado com uma multinacional é uma porta fechada para startups brasileiras, institutos públicos e redes de universidades que já têm competência técnica para entregar soluções de ponta”, alerta Cugler. “A tecnologia comprada de fora não volta em forma de emprego, renda ou autonomia. A tecnologia feita aqui dentro, sim.”
A crítica central do estudo é: não se trata apenas de economia ou redução de gastos, mas de soberania tecnológica e visão de futuro. A ausência de uma política pública sólida de fomento à tecnologia nacional faz com que o Brasil perca a oportunidade de transformar sua demanda pública em alavanca para o desenvolvimento científico e tecnológico interno.
“O Brasil tem infraestrutura, cérebros e rede pública qualificada para oferecer alternativas robustas”, reforça Cugler. “Mas, para isso acontecer, é preciso uma decisão estratégica: investir no que é nosso. Com os mesmos recursos que hoje sustentam big techs, poderíamos financiar data centers nacionais, ciência aberta, segurança digital sob jurisdição própria e gerar milhares de empregos qualificados.”
A pesquisa foi desenvolvida de forma colaborativa pelo Getip-USP e pelo Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (Gepsi Data), vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da UnB. Os dados e a metodologia estão disponíveis na íntegra em nota técnica publicada publicamente.
O Brasil precisa decidir se continuará como cliente do progresso alheio ou se pretende liderar o seu próprio caminho.
Fonte: UnB, USP e FGV